Poemas em português



ESTOU SEMPRE AQUI


Gostava da chuva mansa
dos dias do norte.
adorava a humidade sobre o rosto:
pouso no chão o telefone
sobre o tapete cinzento
e ajusto a luz nas persianas;
ria-se por nada às sextas-feiras
quando ao entardecer
enlouquece de súbito a cidade:
fecho a varanda
em pleno agosto para impedir
que se espalhe a campainha;
não perdia uma única
das manhãs de feira,
as rifas, as lojas com sardinhas:
abro um livro para fechá-lo,
não me sobressalte a meio de um verso
o som do telefone;
atava à esquerda
o cachecol sobre a gabardina
desproporcionalmente clara:
ponho um disco, embora baixo,
e olho com prazer o aparelho
mudo sobre o tapete;
gostava de passar a noite em comboios,
apanhar aviões, camionetas
para qualquer lado:
no meu caderno anoto uma data mais,
outro dia, outro mês, outro ano,
eu estou sempre aqui.


(Tradução António Miranda)


ALFAMA

Um homem é a cidade em que vive.
A chuva fina que traga seus pasos
quando em um sábado volta para casa
de madrugada, e estuve tão perto e
mão era feliz. Um homem é a cidade
em que vivem outros homens
que conversam com suas palavras,
vestem essas quatro cores
e até puderam ser ele mesmo.

(Tradução de António Miranda)


PINTURAS / 6

Um arco para entrar em lugar nenhum,
uma paisagem samambaias no mármore,
um capitel sobre a relva hirta,
uma inscrição com a palavra tempus.

O pedestal com uns pés descalços
da figura que não está, nichos
vazios, obeliscos derrubados,
arquitraves que não sustentam nada.

Em areias que acumulam as chuvas
sobre acessórios das velhas abóbadas
prendem zarzas, figueiras e até oliveiras.

Então o presente não se vê,
seu símbolo são plantas trepadeiras
entre muros, pilastras e colunas.

(Tradução de António Miranda)


CLARIDADE DO BOSQUE

Pelo caminho às vezes
cai algum tronco que a relva acolhe
e o musgo se apossa.

                                As aranhas

plantam seu observatório de silêncios
e as larvas cavam suas cidades.

Cada tronco abatido pela tormenta
transforma-se em um canto dos bosques.
Passam os caminhantes sem sequer

mirá-lo. Seus poemas
em cuneiforme de insetos que mordem
a madeira escrevemos para ninguém.

(Tradução de António Miranda)


LUGARES

Cores que o pó

absorve, e as molduras,
país da curcuma. Abandonadas
janelas com cristais

rotos, portas abertas

ao vento e a chuva de dezembro,
relógio com ponteiros  

mortos, floreiro inútil,

lençóis brancos pela memória.
Mas quando as elevo
nada me diz nada,

nunca estive na casa cujas ruínas
habito. Em me presente
já não resta passado.  

(Tradução de António Miranda)


HÖLDERLIN 

Que haja uma ponte
de pedra. Que a corrente
a abrace carinhosa
pela cintura,e depois se retire
sem dizer nada
e eu fique. Pelas suas areias
circulem carruagens.
Cheguem
com fardos volumosos
e saiam com
os
sacos entre as grades,
de passo bem ligeiro.

E que me trema a mão
ao escrever cartas.

Que o caminho
entre na penumbra
e o arvoredo o oculte de imediato
e a névoa caia
naquele ponto do bosque.

Que a janela de onde vejo isto
dê para fora, não para dentro. 

(Tradução de Maria Soledade Santos)



ORAÇÕES 

Mostra-mo a janela do quarto.
A luz desenha-o com pulso firme,
a claridade matiza-o
com manchas de pintor impressionista
numa tela de areia.
Mostra-o, mas não o entrega.
O espaço. O cheiro da terra húmida,
folhas dispersas pelo canal,
lampejos de limão maduro,
fragrância das rosas
quando amanhece, sinfonia
caótica de pássaros, canção
da chuva nos canos
e nos vidros. O espaço
está em mim,
embora não o possua. Em mim persiste
se o contemplo da janela.
Não me mostra o que vou vendo,
mas aquilo que sou.

(Tradução de Maria Soledade Santos)




MESTER DE HOTELARIA

Subiu comigo atè ao quarto,
vi como acendia um cigarro e falava
no corredor a um papagaio cinzento e amarelecido de nicotina
ou de vómito. A luz esvaída, áspera,
do fluorescente reflectia-se nos seus olhos.
Cambaleava, desabotoou a blusa
e deixou mal dobrada a saia sobre o catre.
Senti horror,
e um desejo imediato de estar bêbado como ela.
Mexeu-me debaixo da roupa e acendeu
outro cigarro e deixou-o nos meus lábios.
Não soube para onde olhar, quer dizer, como
agradecer a carícia.
Talvez tivesse sido o combinado.

(Tradução de Joaquim Manuel Magalhães)


5 [Feira da Ladra] 

No seu olhar, o sono em atraso
e pouco empenhamento na paisagem
espessa do outono. Os feirantes
gritam sem ilusão as ilusões

e levantam as peças mais lustrosas
à passagem dos vultos indolentes.
Repete-se a imagem, nos seus dias
apenas muda a cor que oferece o céu.

Quem lembra o albatroz, tosco e inábil
na coberta? Ninguém fala de símbolos,
amanhã venderão em outra feira,

e no meio haverá uma estrada,
almas e almas, baldios, sinais,
e uma nota no livro de contas.

(Tradução de Joaquim Manuel Magalhães)


RELATOS  1

Se lhes pergunto o que desejam, dizem
que nada, que apenas olhavam móveis
por gosto, a passar a tarde. Juntos
os corpos, falam baixo: o armário
terá de ser maior, procuraremos
uma cómoda alta aonde caiba
a roupa de bebé quando crescer,
os brinquedos: mais velho saberá
a cor da sua infância. Dão voltas
para voltar à cama de casal
de elegantes mesas de cabeceira.
Nunca olham o preço, que não podem
pagar. Os vendedores por detrás deles
riem-se, rio-me também, esqueço
como escolhi os móveis por catálogo,
uma noite, ao fechar a loja. Só.

(Tradução de Joaquim Manuel Magalhães)


UN SENHOR DE AZUL

e de barba por fazer. Aproveita
a época baixa, o desdém
de algum jovem desiludido
para tentar, uma vez mais, o amor.
Passeia sem ninguém a acompanhá-lo.
Dorme pouco. Não teve nada e agora,
na cidade, basta estender a mão:
os livros estão todos, corpos sempre
aguardam nesse bar conhecido.
Basta passar a porta que o faça feliz.
Por isso ano atrás de ano se veste
de azul, descuida o seu aspecto, fuma,
e regressa na época baixa
ao lugar afastado. Tal como então.

(Tradução de Joaquim Manuel Magalhães)