GUARDA-ROUPA
As roupas que escolhemos para nos ver
e as que, estando juntos, tiramos.
Vestimenta e nudez ao mesmo
tempo. Com blusa, tu; com pólo, eu;
cores entre elas charlatãs.
Descalços na madeira, pele
à pele entregue. Com casaco
ao fim da tarde, que arrefece
pela ribeira, ou com o torso
descoberto na praia,
heróis num mármore que esculpiram
os séculos. Cobertos, despojados.
De mão dada ou pela cintura.
No corpo, ou amotinados pelo chão.
(Tradução
de Alberto Augusto Miranda)
dos dias do norte.
adorava a humidade sobre o rosto:
pouso no chão o telefone
sobre o tapete cinzento
e ajusto a luz nas persianas;
ria-se por nada às sextas-feiras
quando ao entardecer
enlouquece de súbito a cidade:
fecho a varanda
em pleno agosto para impedir
que se espalhe a campainha;
não perdia uma única
das manhãs de feira,
as rifas, as lojas com sardinhas:
abro um livro para fechá-lo,
não me sobressalte a meio de um verso
o som do telefone;
atava à esquerda
o cachecol sobre a gabardina
desproporcionalmente clara:
ponho um disco, embora baixo,
e olho com prazer o aparelho
mudo sobre o tapete;
gostava de passar a noite em comboios,
apanhar aviões, camionetas
para qualquer lado:
no meu caderno anoto uma data mais,
outro dia, outro mês, outro ano,
eu estou sempre aqui.
ALFAMA
Um homem é
a cidade em que vive.
A chuva fina que traga seus pasos
quando em um sábado volta para casa
de madrugada, e estuve tão perto e
mão era feliz. Um homem é a cidade
em que vivem outros homens
que conversam com suas palavras,
vestem essas quatro cores
e até puderam ser ele mesmo.
(Tradução de António Miranda)
PINTURAS / 6
Um arco para entrar em lugar nenhum,
uma paisagem samambaias no mármore,
um capitel sobre a relva hirta,
uma inscrição com a palavra tempus.
O pedestal
com uns pés descalços
da figura que não está, nichos
vazios, obeliscos derrubados,
arquitraves que não sustentam nada.
Em areias que acumulam as chuvas
sobre acessórios das velhas abóbadas
prendem zarzas, figueiras e até oliveiras.
Então o presente não se vê,
seu símbolo são plantas trepadeiras
entre muros, pilastras e colunas.
(Tradução de António Miranda)
CLARIDADE
DO BOSQUE
Pelo caminho às vezes
cai algum tronco que a relva acolhe
e o musgo se apossa.
As aranhas
plantam seu observatório de silêncios
e as larvas cavam suas cidades.
Cada tronco
abatido pela tormenta
transforma-se em um canto dos bosques.
Passam os caminhantes sem sequer
mirá-lo. Seus poemas
em cuneiforme de insetos que mordem
a madeira escrevemos para ninguém.
(Tradução de António Miranda)
LUGARES
Cores que o pó
absorve, e
as molduras,
país da curcuma. Abandonadas
janelas com cristais
rotos, portas abertas
ao vento e a chuva de dezembro,
relógio com ponteiros
mortos,
floreiro inútil,
lençóis brancos pela memória.
Mas quando as elevo
nada me diz nada,
nunca
estive na casa cujas ruínas
habito. Em me presente
já não resta passado.
Que haja uma ponte
de pedra. Que a corrente
a abrace carinhosa
pela cintura,e depois se retire
sem dizer nada
e eu fique. Pelas suas areias
circulem carruagens.
Cheguem
com fardos volumosos
e saiam com
os
sacos entre as grades,
de passo bem ligeiro.
E que me trema a mão
ao escrever cartas.
Que o caminho
entre na penumbra
e o arvoredo o oculte de imediato
e a névoa caia
naquele ponto do bosque.
Que a janela de onde vejo isto
dê para fora, não para dentro.
(Tradução de Maria Soledade Santos)
ORAÇÕES
Mostra-mo a janela do quarto.
A luz desenha-o com pulso firme,
a claridade matiza-o
com manchas de pintor impressionista
numa tela de areia.
Mostra-o, mas não o entrega.
O espaço. O cheiro da terra húmida,
folhas dispersas pelo canal,
lampejos de limão maduro,
fragrância das rosas
quando amanhece, sinfonia
caótica de pássaros, canção
da chuva nos canos
e nos vidros. O espaço
está em mim,
embora não o possua. Em mim persiste
se o contemplo da janela.
Não me mostra o que vou vendo,
mas aquilo que sou.
(Tradução de Maria Soledade Santos)
MESTER DE HOTELARIA
5 [Feira da Ladra]
(Tradução de Joaquim Manuel Magalhães)
(Tradução de Joaquim Manuel Magalhães)
UN SENHOR DE AZUL
e de barba por fazer. Aproveita
a época baixa, o desdém
de algum jovem desiludido
para tentar, uma vez mais, o amor.
Passeia sem ninguém a acompanhá-lo.
Dorme pouco. Não teve nada e agora,
na cidade, basta estender a mão:
os livros estão todos, corpos sempre
aguardam nesse bar conhecido.
Basta passar a porta que o faça feliz.
Por isso ano atrás de ano se veste
de azul, descuida o seu aspecto, fuma,
e regressa na época baixa
ao lugar afastado. Tal como então.
(Tradução de Joaquim Manuel Magalhães)